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13.8.08

Por falar em China...

"Sou humano e nada do que é humano me é estranho", disse alguém. Histórias de vida nos cativam naturalmente. Balzac e a pequena costureira chinesa aborda dois momentos cruciais da história recente da China pela experiência dos protagonistas. Na juventude suas vidas são viradas de ponta-cabeça pela Revolução Cultural de Mao. Já o desenvolvimento acelerado dos últimos anos, metonimicamente mostrado no filme pela construção de uma represa, literalmente põe suas doces lembranças de juventude por água abaixo, junto com tradições e construções milenares e uma paisagem natural exuberante.

O mote da inundação de uma comunidade com o pretexto do progresso é o mesmo de Narradores de Javé, de Eliane Caffé, embora em "Balzac" ele seja secundário.

Dois adolescentes citadinos são obrigados a passarem uma temporada numa montanha remota para se "reeducarem", ou seja, livrarem-se de qualquer ranço pequeno-burguês e se tornarem camponeses esforçados e domesticados. Lavagem cerebral, pra ser mais claro. Mas Ma e Huo dão a sorte de conseguir alguns livros proibidos (romances franceses, Balzac principalmente) e os lêem para a costureirinha do título, o que acaba culminando num triângulo amoroso (sim, é um filme de amor). É impossível não lembrar de Fahrenheit 451.

A costureira é uma menina de personalidade forte, mais esperta do que os rapazes, apesar de nunca ter saído daquela montanha que provavelmente não sofria uma mudança significativa desde a invenção da pólvora. A introdução do mundo das letras em sua vida vai tão-somente confirmar nela sua independência.

O filme denuncia a ingenuidade e a ignorância e o seu aproveitamento pelo Maoísmo, que considerava reacionária a leitura de livros "burgueses". Ironicamente, o contato com Balzac muda de fato a vida da costureira (o nome verdadeiro da personagem não é revelado), o que não será necessariamente uma coisa boa pràqueles que a amam.

Um dos garotos promete ao outro que irá salvar sua nova amiga da ignorância. O que eles não sabiam é que isso libertá-la-ia de qualquer controle. Ela entende que é mais forte do que o Governo, a montanha, a família o amor. Ela vai ganhar o mundo (sim, é um filme feminista).

E não é só a costureira que tem a vida transformada pela dupla. Isolada e cheia de analfabetos, a aldeia incumbe Ma e Huo de lhe contarem as histórias dos filmes que eles conhecem. Assim, à noite formam-se platéias para ouvirem atentamente as narrações, que as levam às lágrimas. Isso confirma a posição de Antonio Candido, exposta em O Direito à Literatura: "A literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as 24 horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. (...) Ela (a criação ficcional ou poética) se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance." Sim, é um filme político.